Norte e Sul, de Elizabeth Gaskell
Elizabeth
Gaskell foi uma autora inglesa que escrevia histórias a maneira de Jane Austen,
mas em uma Inglaterra pós-Jane Austen, enfrentando muitas mudanças, a revolução
industrial sendo uma delas. Ao contrário de Jane Austen, no entanto, Elizabeth
descrevia uma Inglaterra dividida, assolada pela revolução e foi uma das
primeiras autoras inglesas a trazer o ponto de vista operário, o que lhe rendeu
muitas críticas e certa notoriedade.
Sua
obra mais famosa chama-se Norte e Sul. A história se passa durante um período
em que a Inglaterra sofria mudanças marcantes na sociedade; a sociedade de Jane
Austen é do campo, com suas famílias de nobres e o casamento como um contrato
político. Em Norte e Sul, essa sociedade está dando espaço à industrialização
que começou no norte. Assim, o título remete a essa situação em que o norte da
Inglaterra se industrializava enquanto o sul ainda se agarrava aos valores
antigos da vida no campo, onde trabalhar ou viver do comércio não dava status e
comerciantes não eram vistos com bons olhos pela sociedade em geral.
A
personagem principal, Margaret Hale, não é filha de nobres, seus pais
casaram-se por amor, seu pai era um pároco e morava no campo, em seu
presbitério. A família da Sra. Hale, mãe de Margaret, era de boa posição
social, por isso Margaret cresceu protegida por sua tia, em Londres, onde foi
educada. Assim, embora seu pai não fosse dono de grande fortuna, Margaret
tornou-se uma dama da alta sociedade inglesa, pelo menos em temperamento e
educação. Com o casamento da prima, ela volta a morar com os pais, em Helstone.
Embora ela tenha sido criada em Londres com suas primas e tia, no romance dois
lugares são mencionados durante toda a obra: Helstone e Milton. A meu ver,
Helstone tem um papel muito importante para Margaret, como um refúgio, quase
como um símbolo do que o paraíso deve ser. Quando Margaret chega a Milton, um
comentário de Margaret deixa claro o choque que ela sentia ao deixar a pacífica
Helstone: eu vi o inferno. Milton é
descrita mais duramente, a fumaça negra que cobre os céus são descritas
veementemente, como parte de um quadro nem um pouco agradável sobre Milton.
Existem
muitas semelhanças entre “Norte e Sul” e “Orgulho e Preconceito”, de Jane
Austen. Embora Margaret não desprezasse o pretendente, tal qual Elizabeth
Bennet, heroína de Austen, Margaret nega sua primeira proposta de casamento,
vinda do irmão do esposo de sua prima, a quem Margaret via como amigo, um
advogado e, portanto, bom partido para a personagem. No entanto, Margaret não o
vê como nada mais que um amigo, então ela decide negar o pedido.
O
Sr. Hale, até então pároco de Helstone, confia em Margaret um bombástico
segredo: sem que a Sra. Hale suspeitasse, ele havia decidido deixar o
presbitério, mudando-se para Milton, no Norte da Inglaterra, para preencher uma
posição de professor. A mãe de Margaret, que reclamava que seu marido nunca era
enviado para um presbitério maior e sentia-se muito irritada com isso, é
forçada a abandonar os confortos de Helstone e muda-se com a família para
Milton, uma cidade descrita como coberta por uma nuvem negra vinda das
fábricas.
É
nessa parte que o sul e o norte se encontram. E é em Milton que a maior parte
da história é desenvolvida. As semelhanças com Orgulho e Preconceito estão
ainda presentes nesta parte, quando Margaret conhece o Sr. Thornton, um comerciante
importante e rico, proeminente na sociedade de Milton, e os dois passam a
desenvolver um relacionamento bastante combativo. Podemos afirmar que Margaret
Hale é como o Mr. Darcy de Orgulho e Preconceito, orgulhosa, qualidade
percebida pelo Sr. Thornton, que em certos momentos pode ser comparado com
Elizabeth Bennet. Inclusive ele se sentia inferior a ela, pois uma dama da alta
sociedade não haveria de dar-lhe nenhuma atenção.
O
que mais atrai em Norte e Sul, no entanto, é acompanhar o desenvolvimento da
personagem de Margaret. Em Londres, uma dama jamais caminharia sozinha pela
cidade sem um cicerone, mas em Milton ela tem liberdade de ir e vir sem
necessidade de ser acompanhada. Com o tempo ela fica mais confiante e
independente, expressando suas opiniões abertamente, fazendo amizade com uma
família de operários que trabalhavam nas fábricas de algodão. Assim, Margaret
circula pelos dois mundos: o mundo dos donos de fábrica (representados pelo Sr.
Thornton e sua mãe de pulso de ferro) e dos operários (representados pelo Sr.
Higgins e Bessy Higgins, sua filha, que desenvolve uma profunda amizade com
Margaret), mas muitas vezes ela toma partido dos operários, por achar que o Sr.
Thornton é muito duro com eles e que sua posição social tornava injusto que ele
pudesse mandar e desmandar seus operários da maneira que o fazia. Dessa forma,
quando os operários de todas as fábricas decidem entrar em greve pedindo para
aumentar seu soldo, é o período que Margaret e o Sr. Thornton mais se
desentendem.
Margaret,
assim que chega a Milton, não esconde seu desprezo por comerciantes,
considera-os deselegantes e preocupados somente em vender seus produtos. Essa
era a posição natural daqueles que viviam o modo de vida do Sul, onde o ócio
era considerado elegante. Quando começa a conhecer o Sr. Thornton, um dos
primeiros alunos de seu pai e logo um amigo para ele, ela o vê somente como um
comerciante. Ela não esconde suas opiniões. O caráter de Margaret começa
traçado assim, como uma mentalidade puramente sulina, da maneira comum à
sociedade inglesa até então, retratado como um comportamento comum a pessoas do
campo. Para citar um exemplo, Margaret costumava trazer cestas de alimentos
para os pobres quando vivia em Helstone. Era uma prática comum às damas da
sociedade inglesa visitar os pobres com ofertas de comida. Esse comportamento é
mal visto em Milton, sendo um dos principais choques de culturas presenciados
pela protagonista. Quando ela conhece o Sr. Higgins e Bessy, ela pede o
endereço deles para oferecer-lhes uma cesta de comida, mas sem demora o Sr.
Higgins a repreende, orgulhosamente, mas entende que, por ser forasteira, ela
não compreendia a maneira que as coisas eram feitas em Milton.
O
povo de Milton é então descrito como extremamente progressista: não gostam de
ser ajudados, esnobam esmolas, preferem ganhar seu próprio soldo e são
extremamente orgulhosos. As leis trabalhistas ainda não protegiam crianças do
trabalho, então era comum que, ao invés de estudar e aprender as letras, as
crianças de Milton já trabalhavam para o sustento. Quando entram em greve,
dependem do dinheiro da União, que hoje são conhecidos como sindicatos. Cada
trabalhador dava um pouco por mês de seu soldo e em troca a União os apoiava em
momentos de greve. Foi apoiado por esse órgão que o operariado pôde entrar em
greve geral.
Margaret
decide ajudar os grevistas durante o período que a falta de soldo fazia com que
não pudessem pagar por sua comida. Quando o Sr. Thornton fica sabendo disso ele
a critica, dizendo que ajudá-los a estender a greve não os ajudava, apenas os
feria. É nesse momento do livro que podemos ver um pouco mais a respeito do Sr.
Thornton.
Margaret
é muito preconceituosa a respeito do Sr. Thornton. Considera-o duro, abusivo,
ela pensa que ele deve ser mais compreensivo com seus operários. Com o decorrer
da história, aprendemos que o Sr. Thornton não foi sempre rico e poderoso. Seu
pai tinha perdido todo o dinheiro da família fazendo uma aplicação na bolsa (de
valores) que revelou-se péssima escolha, fazendo com que cometesse suicídio por
ter levado a família à ruína. Assim, sem dinheiro, o Sr. Thornton começou sua
carreira como funcionário no comércio, aprendendo com isso e, mais tarde,
tornando-se um importante e respeitado comerciante. Entre os comerciantes de
Milton, no entanto, o Sr. Thornton foi um dos poucos que achou por bem instalar
uma “roda” em sua fábrica que reduzia a quantidade de fluff (felpas do algodão, pequenas o suficiente para entrar nos
pulmões) no ar, protegendo, assim, seus operários. Essa felpa causava danos nos
pulmões, levando-os à morte prematura. Isso nos ajuda a compreender um pouco de
seu caráter.
A
mãe de Margaret, uma mulher de constituição muito fraca, adoece durante essa
greve. A autora não define qual a doença que a aflige, mas a meu entender ela
teve tuberculose, doença comum naquele tempo e um dos principais motivos de
óbito. Com intenção de pedir ajuda à Sra. Thornton, Margaret encontra-se
cercada pelos grevistas revoltados dentro da casa da família Thornton. Como
solução contra a greve, o Sr. Thornton e os outros comerciantes trouxeram mão
de obra da Irlanda, o que significaria que os grevistas não teriam mais
emprego. Revoltados com a atitude, os grevistas cercam a casa do Sr. Thornton.
Margaret, por sua vez, provoca o Sr. Thornton a enfrentar as massas e falar com
eles, pois não concorda que ele tenha apenas chamado os soldados para lidar com
os revoltosos. Ela basicamente o chama de covarde – não nessas palavras, mas
fica subentendido – e ele sai à frente da casa e ela o segue, tendo se
arrependido de sua atitude, pois os revoltosos eram muitos. O Sr. Thornton
recusa-se a ceder e, com a intenção de protegê-lo, Margaret abraça-o, tentando
fazer-se de escudo, pois um ataque a uma mulher era considerado uma grande
ofensa e era mal visto. Ninguém podia atacar uma dama! Mas os grevistas, com os
nervos à flor da pele, atiraram uma pedra que atingiu Margaret, não seu alvo
maior.
A
atitude de Margaret é vista por todos como uma atitude de amor dela para com o
Sr. Thornton. Qualquer toque entre um homem e uma mulher, em público, era visto
como uma atitude de amor, de intimidade. Assim, o Sr. Thornton vê-se obrigado a
pedi-la em casamento, uma vez que sua reputação estaria manchada se não o
fizesse. O pedido de casamento foi rudemente recusado por Margaret, que acha a
atitude ofensiva e desnecessária. Assim como Elizabeth negou o primeiro pedido
do Sr. Darcy em “Orgulho e Preconceito”, acontece o mesmo com Margaret e o Sr.
Thornton que brigam e ele a deixa, extremamente irritado.
Um
personagem do qual não falei até agora é o irmão de Margaret. Ele é mencionado
algumas vezes, mas sabemos que está exilado na Espanha. Frederick Hale, irmão
de Margaret, juntou-se à Marinha, mas, não contente com as atitudes abusivas do
Capitão, ele e um grupo se revoltam em alto-mar, iniciando um motim. Eles não
matam o Capitão, mas o expulsam do navio em um bote. A atitude fez com que a
Inglaterra os tratasse como desertores e criminosos, condenando à forca aqueles
que se apresentaram à corte marcial. Com isso, Frederick foge para o exílio,
não podendo retornar à Inglaterra, pois seria preso e condenado à forca se
detectado.
Quando
a Sra. Hale adoece, Margaret, por impulso, escreve ao irmão na Espanha e ele
vem a Milton a tempo de ver a mãe com vida. Sua vinda é mantida em segredo e,
quando a Sra. Hale morre, Frederick tem de partir. Margaret o acompanha até a
estação de trem e uma sucessão de eventos desastrosos se seguem. Ela é vista
abraçando o irmão por ninguém menos que o Sr. Thornton e, logo após, um homem que
conhecia Frederick do tempo de Helstone e sabe que se trata de um pária, surge
completamente bêbado e acaba caindo nas escadas – com um empurrãozinho de
Frederick – e Margaret o apressa a pegar o trem antes que alguém percebesse a
comoção.
Acontece
que o homem que reconheceu Frederick acaba morrendo e a investigação era
normalmente encaminhada a um magistrado local, não necessariamente um homem da
lei, mas um membro da comunidade responsável por decisões hoje cabíveis a um
delegado. O magistrado decidia que tipo de atitude legal tomar a respeito de
uma investigação. O Sr. Thornton era o magistrado do caso. Aqui é um ponto
crucial do livro. Margaret, querendo proteger o irmão, mente para o policial
que a questiona, pois uma testemunha a colocava no local onde a vítima tinha
sido vista por último. A noção de que o Sr. Thornton sabia que ela havia
mentido é muito forte para Margaret, que não pode revelar, em sua defesa, os
motivos verdadeiros de sua mentira. Surpreendentemente o Sr. Thornton abafa o
caso, protegendo a reputação de Margaret, mesmo que estivesse com ciúmes do
rapaz misterioso que ele acreditava ser amante de Margaret.
Com
a morte do Sr. Hale, a tia de Margaret, que a criou, vem a Milton para buscá-la
e a encontra muito diferente. Ela fica surpresa que a sobrinha anda por Milton
sozinha, pois não tinha sido educada dessa forma. Ela permite que ela se
despeça de seus amigos e a leva de volta a Londres, de onde ela julga que
Margaret nunca deveria ter saído.
Agora
que Margaret tinha se adaptado a vida no norte ela se encontrava de volta aos
hábitos do Sul. O modo de vida que ela defendia com tanto afinco nos seus
primeiros dias em Milton eram agora tediosos para ela. Nem mesmo quando visita
Helstone com seu padrinho consegue recuperar aquele encanto que ela tinha por
aquele lugar, pois seu espírito agora se encontrava bastante progressista.
Sentia falta da agitação de Milton, sua independência e até mesmo o Sr.
Thornton, a quem ela desenvolveu um afeto tardiamente, quando ela não achava
que ele se interessaria por ela. Afinal, ela o recusou. Quando seu padrinho lhe
deixa grande parte do seu dinheiro em razão de retirar-se para a Argentina onde
o clima mais ameno faria bem à sua saúde, Margaret imaginou que poderia ajudar
o Sr. Thornton.
Os
operários irlandeses mostraram-se ineficientes para lidar com o maquinário das
fábricas, o que, junto com o tempo perdido com a greve, fez com que o Sr. Thornton
não conseguisse cumprir os prazos com seus clientes, o que fez com que perdesse
dinheiro e tivesse que fechar a fábrica. Talvez amolecido por seu amor por
Margaret, ele tinha se tornado amigo do Sr. Higgins, criando inclusive uma
cozinha em sua fábrica onde seus funcionários podiam almoçar. É no final do
livro que o Sr. Thornton e Margaret finalmente se entendem e, com o dinheiro
que ela ganhou do padrinho, ela o entrega a Thornton para que ele reabra a sua
fábrica e, finalmente, aceita seu pedido de casamento e volta para Milton com
ele.

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